Naquele bairro sem nome vivia um velho bêbado.
O bairro era famoso por seu engenhoso tráfico de drogas e prostituição. O lugar era pobre e em cada esquina você se deparava com uma casa de prostituição aonde jovens meninas e meninos faziam serviços a fim de ganhar dinheiro para sobreviver por mais um dia.
As pessoas, por sua vez, eram viciadas, prostitutas e pobres coitadas que até pelo diabo foram rejeitadas. O bêbado não se encaixava em nenhum caso. Talvez estivesse próximo dos viciados já que não fazia nada além de beber, afogava-se em álcool, perdendo toda a sua sanidade. Mas não, ele não era louco. Muito pelo contrário, o bêbado era a pessoa mais inteligente do Paraíso Ilícito, ninguém só não sabia porque ele bebia tanto.
O velho bêbado também não tinha nome. Assim como seu bairro, ele era conhecido por sua característica mais marcante, o vício insaciável por bebidas alcoólicas.
Todas as manhãs, exatamente às 6:30, ele debruçava-se sobre o parapeito de sua janela com uma garrafa de whisky barato (e furtado) em mãos. Ele tomava um gole e observava as pessoas andarem pelas ruas e lhe encararem, olhares curiosos tentando desvendar o velho enigmático. Ele ficava ali, naquela mesma posição o dia inteiro ora bebendo, ora fumando.
Naquele dia, ao anoitecer, exatamente às 18:00, o bêbado já não estava mais debruçado por sua janela. Ele abriu a porta de sua humilde casa e sentou-se no degrau da escada e ficou a observar o curto fluxo de pessoas. Ele colocou a garrafa vazia de whisky no chão e acendeu um maço de cigarro, o tragou devagar e soltou a fumaça na direção da lua que estava linda e brilhante, mas incompleta, faltava uma metade.
Quando estava prestes a terminar seu cigarro ele notou um garoto escondido pela penumbra da noite atrás de um poste. Observo-o curioso, indagando-se o que estaria ele fazendo ali. Mas nada fez. Depois de alguns minutos, notou que o garoto continuava ali a o encarar, inquieto. Ficaram os dois então se encarando, sem dizer uma palavra até que o menino quebrou o silêncio entre os dois.
— Aqui é agradável à noite. — diz ele, revelando-se e o velho só o respondeu para não parecer mal-educado.
— Sim, mas eu não saio muito. Hoje é uma exceção.
O garoto se aproximou, um capuz cobria sua cabeça e ele tinha as mãos enterradas no bolso da calça como um adolescente. Pouco se via de seu rosto devido à má iluminação da rua e a visão do velho já não era a das melhores.
— Eu gosto de como a lua ilumina as ruas silenciosas, isso me traz paz.
O velho, por algum motivo desconhecido, talvez por causa do álcool em seu sangue que o tornava um bêbado melancólico, interessou-se pela conversa.
— É por isso que está aqui? Você procura por paz? É irônico dizer isso no Paraíso Ilícito, se tem uma coisa que essas pessoas não têm é paz.
— Eu apenas gosto da noite. Por que você está aqui então?
O velho suspirou, arrastou o traseiro pelo degrau e sinalizou com as mãos para que o garoto sentasse ao seu lado. O menino não hesitou, sentou-se ao lado do velho e esperou que falasse.
— Me deixe lhe contar uma história, criança. Há muito tempo havia esse professor, ele era muito inteligente e renomado. Entrou na faculdade com 16 anos e aos 28 anos já tinha tudo. Ele era convidado para palestrar em muitos países e tornou-se bem-sucedido muito rapidamente, casou-se com uma mulher linda e ele foi feliz por um tempo. Mas, como nem tudo são flores, ele começou a desandar. Era inteligente, mas não lidava muito bem com o estresse e então bebia para relaxar. Pelo menos essa foi a sua desculpa. Passou a beber mais e mais e quando sua esposa percebeu e começou a falar, ele a calou. Toda vez ele a calava com um tapa em seu rosto que a fazia se encolher de medo e a deixava sem coragem para olha-lo nos olhos por dias. Eles tiveram um filhinho, um lindo menino que ao ver o pai levantar o dedo para mãe, se metia entre os dois e apanhava por ela. Eles viveram assim por seis anos até que num dia como esse houve uma grande briga. A esposa ia embora e ia levar o menino com ela. O marido enfurecido não gostou nada disso, então agarrou a esposa e o filho e os enfiou no carro, saindo pelas ruas, dirigindo sem rumo e em alta velocidade. Ele ouvia os gritos da esposa e o choro do menino, mas a raiva dentro de si era tão grande que ele calou os dois com alguns socos. Logo não havia mais gritos e nem choro, logo não havia mais esposa e nem filho. O carro capotou, mas ele conseguiu se salvar. A esposa e o filho morreram e aquela noite foi a sua ruina. Ele perdeu sua família, sua dignidade e o seu futuro.
O velho contou a história com uma expressão vazia, ele tossiu um pouco e sorriu triste. O garoto escutava a história atentamente e ao ouvir o velho terminar, perguntou:
— Por que me conta isso?
— Bem, eu apenas quis lhe contar uma história, criança. Estávamos falando sobre paz, certo? Será que esse homem teve alguma paz?
— Espero que não. Ele não merecia, na verdade ele quem deveria estar morto e não a pobre esposa e a criança.
— Pode ter certeza que ele não teve uma vida fácil ou que sentiu alguma paz. Desde aquele dia ele se afoga na bebida, motivo pelo qual sucumbiu. Não existe mais esperança para ele, criança. Igual a esse bairro... Será que existe esperança aqui? Será que a vida das pessoas algum dia mudará? Elas estão fadadas ao esquecimento. Cada geração que nascer neste lugar já terá seu destino escrito, irão viver lutando e só morte poderá os libertar. Morrerão e serão esquecidos, suas vidas não têm valor. Igual ao professor, ele poderia ter tido uma vida brilhante e feliz, poderia ter feito uma diferença. Mas ele pecou e agora também será esquecido, como todos os moradores do paraíso ilícito. — O velho riu, abaixando a cabeça e balançando-a para os lados negativamente. Era tudo cômico para ele, o garoto não entendia.
— Você está errado! — O menino disse com certeza, o que fez com o que o velho arqueasse uma sobrancelha, surpreso por estar sendo contrariado.
— Estou? — Perguntou quase para si mesmo.
O garoto olhou para a lua e fechou os olhos que repentinamente pareciam pesados.
— Eu vou completar a sua história. Após o professor salvar a si mesmo e fugir, a mãe acordou e desesperada, conseguiu abrir a porta e empurrar o garotinho para longe, mas não teve tempo para salvar a si mesma e morreu quando o carro explodiu. O garotinho acordou sozinho, no meio do nada ao lado das chamas. Ele cresceu em orfanatos e era adotado por famílias horríveis, então ele fugia. Sempre que tentava dormir à noite, ele sentia o pai lhe espancar e ouvia o soluço suave da mãe. Ele só sentia paz quando a imaginava como uma estrela que o guiava e cuidava de si, mas as estrelas só apareciam a noite. Ele prometia a si mesmo que quando encontrasse com o maldito homem que estragou a sua vida, ele o mataria e somente assim ele encontraria a verdadeira paz que só a vingança podia lhe trazer.
O garoto viu o olhar do velho cair, mas ele se manteve firme.
— Eu imaginei que esse dia chegaria — o velho confessou, esfregando as mãos ásperas uma a outra.
— Já faz tanto tempo.
— 13 Anos. — O garoto disse com frieza. — Eu vim aqui com um proposito e eu desejo cumpri-lo.
O velho o olhou triste e disse:
— Nós vivemos em um mundo de deuses e monstros, você decide quem quer ser. Eu decidi ser um monstro e me arrependo até hoje. Só eu e minha garrafa de whisky sabemos como é doloroso. — O velho bêbado, e agora professor-pai, suspirou com melancolia. — Mas foram longos 13 anos sozinho, nessa casinha, enchendo a minha cara, tentando esquecer. Então faça o que veio fazer, não irei impedi-lo.
O velho levantou-se com dificuldade, pegou a garrafa vazia de whisky e contemplou a lua mais uma vez. Seu olhar se encontrou com o do garoto e ele lhe disse, a voz clara e firme:
— Bem-vindo ao Paraíso Ilícito.
O velho então se arrastou para dentro de casa. O garoto o seguiu, segurando um embrulho nas mãos. A lua continuava a iluminar, ainda incompleta, as ruas e as estrelas brilhavam. Tudo estava silencioso até que um disparo foi dado.
Escrito em 2016 para uma atividade de português.
Nenhum comentário:
Postar um comentário